05/07/2017

Malas de dinheiro, negócios ruinosos e o homem que escapou

A ordem veio do 8º andar, o piso da administração do Banco Português de Negócios (BPN), para a Direcção Operacional, situada igualmente no edifício-sede de Lisboa. Internamente, alguém teria de ir ao balcão de apoio do banco, no primeiro andar do prédio, para levantar e transportar um saco com 1,5 milhões de dólares (cerca de 1,4 milhões de euros actualmente).
 
A tarefa coube ao funcionário António Tinoco, que recebeu e contou o dinheiro, levando-o de seguida de elevador para uma sala do 8º andar do banco.  

Lá dentro, estava o administrador Dias Loureiro e um casal que falava espanhol. Os maços de dinheiro foram então contados e colocados numa mesa, à frente de todos os presentes. Depois, os dólares passaram para o interior de uma mala preta do casal. No fim, Tinoco ofereceu-se para acompanhar os clientes até à garagem do banco, onde tinham estacionado "um carro grande com matrícula espanhola". A pasta foi colocada na bagageira e despediram-se, com o diligente funcionário a ajudar até nas manobras de saída da viatura da garagem para a movimentada Av. António Augusto de Aguiar.

Quase seis anos depois, na manhã de 3 de Abril de 2009, António Tinoco contou este episódio ao procurador Rosário Teixeira, durante a inquirição no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP). O ainda funcionário do BPN (hoje BIC) disse que não se lembrava do nome do "espanhol" nem do offshore (Jared) em que o dinheiro tinha sido debitado ou ainda se o sujeito tinha assinado algum documento na sua presença. Mas não teve qualquer dúvida sobre a presença de Dias Loureiro naquela reunião.

Já o procurador tinha a convicção de que o homem da mala era Benedito Vicente, dono da empresa marroquina Alborada, comprada em 2002-2003 pelo grupo BPN/Sociedade Lusa de Negócios (SLN) no âmbito de uma complexa teia de negócios, tratados por Dias Loureiro, Oliveira Costa e o empresário Abdul Al -Assir, que acabaram por provocar dezenas de milhões de euros de prejuízos ao banco e à sociedade que nele mandava.



Menos de três meses antes de recolher este testemunho, o procurador decidira abrir mais uma investigação ao universo BPN, um processo que foi arquivado oito anos depois, no início deste mês, por falta de provas. E sob forte polémica: pelos termos usados no despacho judicial e por ninguém ter sido responsabilizado por prejuízos avaliados em mais de 70 milhões de euros.


A consulta de parte da documentação principal do inquérito-crime (ver caixa), feita pela SÁBADO, revela que o Ministério Público (MP) vasculhou as contas bancárias e ouviu as conversas ao telefone e via email de Dias Loureiro, mas acabou por chegar a um beco sem saída. "Toda a prova produzida nos autos revela-nos uma engenharia financeira extremamente complexa, a par de decisões e práticas de gestão que, a serem sérias, são extremamente pueris e desavisadas, o que nos permite suspeitar que o verdadeiro objectivo da celebração dos negócios da Redal e da Biometrics [empresa de Porto Rico] foi tão-só o enriquecimento ilegítimo de terceiros à custa do prejuízo do Grupo BPN, nomeadamente, e pelo menos, de Dias Loureiro, de Oliveira Costa e de Al-Assir, enriquecimento esse sob a forma de pagamento de comissões, ainda que através da formalização da pretensa concessão de financiamentos a entidades instrumentais, aceitando, logo à partida e deliberadamente, que tais empréstimos seriam incumpridos, razão pela qual não se mostra exigida a prestação de garantias adequadas", especificou a procuradora Cláudia Porto que concluiu o processo depois de vários anos sem diligências relevantes. 

O enriquecimento
 
Quando saiu do último governo cavaquista, em 1995, Dias Loureiro declarou ao fisco rendimentos de 57 mil euros. Na época, começou por usar uma sala que lhe foi cedida pelo amigo Daniel Proença de Carvalho, para fazer consultoria jurídica. O ano seguinte foi uma pequena travessia no deserto. Sem emprego fixo, o advogado declarou apenas 16 mil euros no IRS de 1996. Poucos anos depois, já ganhava milhões nos negócios, sem perder influência política. Em 1999 assumiu a presidência da Ericsson Telecomunicações, o primeiro passo para chegar a administrador, em 2002, da Ericsson Espanha. E tornou-se consultor da construtora espanhola Dragados. Pelo meio, entrou na Sociedade Lusa de Negócios – que controlava a gestão do BPN –, liderada pelo colega de governo cavaquista, o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais José Oliveira Costa.


Antes, já lhe tinha surgido José Roquette com uma proposta tentadora. O empresário garantiu-lhe stock options de 15% (a possibilidade de comprar parte da empresa), a repartição de 7% dos lucros e um salário principesco na Plêiade, SGPS, uma sociedade anónima criada em 1992 e com sede numa moradia luxuosa da Avenida do Restelo, em Lisboa. O papel de Loureiro? "(...) procurar novos negócios para investimento", conforme salientou muito anos depois o antigo político quando foi constituído arguido e interrogado, em Julho de 2009.


Contactos privilegiados era algo que o ex-ministro tinha conseguido, por exemplo, em Marrocos. Um deles estava no governo (o ministro do Interior, Driss Basri) e Loureiro conseguiu reunir vontades na sociedade que ganhou a construção e a concessão por 30 anos da exploração da rede de água, saneamento e energia eléctrica na capital marroquina.


Os ministros socialistas Jorge Coelho e Pina Moura assistiram à assinatura do contrato histórico, que previa um investimento que podia chegar aos 1.200 milhões de contos (hoje, cerca de 6 mil milhões de euros), cuja rentabilidade seria garantida pelo recebimento das tarifas cobradas pela distribuição de água, saneamento e electricidade. Assim nasceu a Redal, uma sociedade anónima com três sócios principais: a Plêiade, do empresário José Roquette, a então empresa pública EDP e os espanhóis da Urbaser (Grupo Dragados). Cada um detinha 29% do capital da empresa e ainda havia um sócio minoritário: a Alborada, com 13%, detida pelo já citado Benedito Vicente, o homem da mala de dólares. 

Dias Loureiro tornou-se presidente da Redal e intermediário de outras intenções de Roquette: vender a Plêiade a quem desse mais. A ponte com Oliveira Costa, o poderoso presidente do BPN/SLN, surgiu quase de imediato e as negociações foram rápidas: duraram um mês. Roquette anunciou que comprou antes os 15% que Loureiro tinha na Plêiade (o MP diz agora que não tem a certeza de isso ter sucedido) e, em Dezembro de 2000, o banco pagou pela empresa cerca de 57,5 milhões de euros. O negócio incluiu a Redal e Loureiro lucrou cerca de 7,5 milhões de euros.

Parte substancial deste valor investiu-o em acções da SLN e tornou-se administrador do grupo liderado por Oliveira Costa. Só que o negócio em Marrocos complicou-se: Loureiro garantiu a Oliveira Costa que tinha perdido o contacto privilegiado no governo e que era cada vez maior a ameaça de o contrato não ser respeitado. No entanto, até para vender a participação da Redal (a empresa Vivendi parecia interessada), tinha de ser obtida a concordância do governo local. Resultado: era necessário mais um "facilitador".


Segundo o interrogatório feito a Dias Loureiro, foi assim que surgiu o libanês Al -Assir, que terá sido apresentado ao antigo político português por um administrador da Urbaser, um dos sócios da Redal. Al-Assir vivia em Espanha e na Suíça e foi nas festas do empresário que Loureiro veio a conhecer o Rei de Espanha, Juan Carlos, com quem chegou a participar em caçadas, e o ex-Presidente norte -americano Bill Clinton.

Ainda segundo as declarações do antigo ministro ao MP, como os franceses da Vivendi não queriam negociar com a marroquina Alborada, o grupo BPN/SLN comprometeu-se a comprar a participação desta e a pagar a Benedito Vicente. Um pagamento que Loureiro disse não se lembrar de ter sido feito para uma conta aberta em Gibraltar e também através de 1,5 milhões de dólares, na sede do BPN.

Investimento em Porto Rico
 
A entrada de Al-Assir nestes negócios foi desastrosa para o grupo BPN/SLN (o banco acabou nacionalizado em 2008 e, em 2016, o Estado português já lá tinha gasto 3,2 mil milhões de euros). Nos depoimentos de 2009, Dias Loureiro e Oliveira Costa desresponsabilizaram-se da participação em negócios ruinosos e acusaram-se mutuamente de terem mais influência junto do empresário líbio. Certo é que foram os dois administradores que encaminharam o BPN/SLN para investimentos e financiamentos propostos por Al -Assir – Oliveira Costa disse ao MP que o libanês ameaçou que não concluiria o negócio em Marrocos se não fosse feito um investimento em Porto Rico e na sociedade Biometrics, que estaria a desenvolver o Cyclope, uma espécie de máquina mais evoluída de pagamentos automáticos (designada ITM), que permitiria também a leitura de folhas A4 e a validação das facturas pela recolha da simples imagem das mesmas.

Quando foi ouvido pelos investigadores, em 2009, Jorge Jordão, revelou que desaconselhou logo o negócio Biometrics. O antigo administrador da SLN, Novas Tecnologias (empresa que foi presidida por Dias Loureiro) explicou que já tinha apanhado o projecto em andamento, mas que resolveu ir a Porto Rico, em Agosto de 2001, conhecer as instalações da Biometrics. Quando regressou a Portugal, relatou que encontrou "alguns técnicos" a trabalhar em "três andares de um prédio" e desaconselhou o investimento por escrito. Depois, em várias reuniões, percebeu que não conseguiria travar "o manifesto desejo por parte do Dr. Dias Loureiro e Oliveira Costa" e tentou minorar o investimento financeiro da SLN no projecto. Não conseguiu grande coisa. No despacho final do processo deste mês, o MP garantiu que o BPN/SLN terá enterrado cerca de 41,1 milhões de euros no negócio de Porto Rico.

A procuradora Cláudia Porto defendeu ainda no documento que existiu uma relação de causa e efeito entre vários negócios do BPN/SLN só aparentemente distintos, especificando que era "impossível" não associar o negócio da Redal em Marrocos ao caso da Biometrics, em Porto Rico. Os indícios: os intervenientes (Loureiro, Oliveira Costa e Al -Assir), as datas e os momentos fulcrais dos negócios são coincidentes. "Na verdade, apenas quando surgiu uma proposta válida, com valores para a aquisição por parte da Vivendi, é que foram fechados os acordos e ocorreram os primeiros pagamentos relativos aos compromissos assumidos no negócio de Porto Rico", especificou, garantindo também que os sucessivos negócios e operações financeiras – o MP diz até que as ligações à rede de negócios suspeitos "parece não ter fim" – serviram para "camuflar" o desfecho desastroso da Biometrics.

Crime sem culpados
 
E isto porque os prejuízos acabaram por ser dissimulados em operações de compra e venda das acções da Biometrics realizadas através de várias sociedades offshore controladas pelo próprio grupo BPN/SLN. As perdas acabaram por cair na discreta contabilidade do BPN Cayman e não entraram durante anos nas contas oficiais do grupo BPN/SLN. "Toda esta engenharia financeira teve como objectivo que o Grupo SLN não ficasse com as acções equivalentes a 25% do capital da Biometrics, visando, também, ocultar a saída das acções da Biometrics do Excellence Assets Fund, por 1 dólar, tal como estavam valorizadas no contrato de revogação do negócio", concluíram os investigadores.

Apesar disto, e já depois da revogação do negócio de Porto Rico, e quando ainda não estavam terminadas as negociações para a venda final da Redal, entre Setembro de 2002 e Agosto de 2003, o BPN concedeu ainda vários financiamentos a três sociedades instrumentais controladas por Al-Assir. No total, os empréstimos (com garantias de hipotecas de imóveis de 3º e 4º grau, ou seja, casas e apartamentos sucessivamente hipotecados a credores) terão ultrapassado os 31 milhões de euros.

Com uma parte deste dinheiro, Al -Assir pagou empréstimos que tinha em outros bancos e o MP ainda suspeitou que parte das verbas pudesse ter sido repartida com Dias Loureiro. Depois de solicitada a colaboração das autoridades espanholas para clarificar o destino do dinheiro que andou pelas contas espanholas de Al-Assir, o MP garantiu que o resultado "não permitiu conclusões sobre o real destino dos fundos". Na prática, e ainda segundo o MP, sem a prova do enriquecimento pessoal não há crime de burla. Um beco sem saída e sem responsáveis.

Texto originalmente publicado na edição nrº 676, de 12 Abril de 2017, da SÁBADO